Impressiona como o Papa denuncia, sempre que pode,
uma espiritualidade beata e clerical que fecha os cristãos em guetos seguros e
os convida a “descobrir novamente o rosto jovem e belo da Igreja.
Uma espiritualidade do concreto. O discernimento,
característica sublinhante da sensibilidade espiritual inaciana em que o Papa
Francisco tanto insiste, tem como elemento incontornável a realidade – como ela
é e não como gostaríamos que fosse. Não por acaso, no seu primeiro documento, o
Papa defende o princípio de que a realidade é superior à ideia. A realidade
como ponto de partida e não como meta, isto é, não uma realidade que tem que
ser abençoada como é, mas que tem que ser assumida na sua concretude para ser
transformada. Condição sine qua non para qualquer discernimento é a
liberdade interior. Essa liberdade de falar ou calar, de fazer ou estar quieto,
de ir à direita ou à esquerda, sendo guiado apenas e só pelo que o
discernimento ditar ser a vontade de Deus. Realidade e liberdade no espírito.
Numa palavra, olhe-se para Francisco e percebemos a força do discernimento.
A atenção espiritual à realidade obriga-nos a aterrar
e a não tornar a oração algo de desencarnado da vida concreta que vivemos. Logo
na primeira intervenção, no dia 12 à noite, o Papa afirma: “Sinto que Jesus vos
confiou a mim (cf. Jo 21, 15-17) e, a todos, abraço e confio a Jesus,
‘principalmente os que mais precisarem’ – como Nossa Senhora nos ensinou a
rezar (Aparição de julho de 1917)”. Esta invocação, nascida precisamente em
Fátima, é rezada na recitação do Terço e diz assim: “Ó meu Jesus, perdoai-nos,
livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu, e socorrei
principalmente as que mais precisarem”. Mas o Papa não fica nas “almas que mais
precisarem” como se estivéssemos a falar apenas daqueles que já morreram.
Amplia o contexto desta invocação à realidade presente e “os que mais
precisarem” são – como continua Francisco – “todos os necessitados (…). Sobre
cada um dos deserdados e infelizes a quem roubaram o presente, dos excluídos e
abandonados a quem negam o futuro, dos órfãos e injustiçados a quem não se
permite ter um passado, desça a bênção de Deus encarnada em Jesus Cristo”.
A liberdade leva Francisco a convidar os peregrinos
de Fátima a questionar a sua espiritualidade. Adverte o Papa que Maria não é
“uma ‘Santinha’ a quem se recorre para obter favores a baixo preço”, nem uma
Senhora “esboçada por sensibilidades subjetivas que A veem segurando o braço
justiceiro de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto
como Juiz impiedoso; mais misericordiosa que o Cordeiro imolado por nós”. Numa
frase questiona as imagens que possamos ter de Deus e de Maria: um Deus que
antes de mais condena e Maria que seria uma “mãezinha” a quem recorremos para
Deus não nos castigar tanto. Recusa uma espiritualidade infantilizante e
sublinha a centralidade de Cristo e da Sua misericórdia: “na fé que nos une à
Cruz de Cristo, ficamos livres dos nossos pecados; ponhamos de lado qualquer
forma de medo e temor, porque não se coaduna em quem é amado (cf. 1 Jo 4, 18)”.
E daqui salta para a exigência da fé: “Possamos, com Maria, ser sinal e
sacramento da misericórdia de Deus que perdoa sempre, perdoa tudo.”
Não, não vou discutir se houve aparições ou visões.
Mas se, como disse o Papa, Nossa Senhora não veio para que a víssemos, para que
é que veio? “A Virgem Mãe não veio aqui, para que A víssemos; para isso teremos
a eternidade inteira, naturalmente se formos para o Céu.” Com esta expressão,
Francisco chama-nos ao essencial. O essencial de Fátima não é o fantástico das
aparições ou o espetacular. Francisco e Jacinta não são santos porque viram
Nossa Senhora, mas porque responderam com a vida ao convite de se entregarem a
Deus. A mensagem de convite à conversão é o centro de Fátima e as conversões
que se dão a partir de Fátima são o grande milagre. E aceitar o convite de ter
uma vida entregue a Deus não se limita a ser uma vida em que se reza mais, mas
também, e principalmente, a acolher o que Fátima proporciona como caminho: “o
Céu desencadeia aqui uma verdadeira mobilização geral contra esta indiferença
que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. Não queiramos ser uma
esperança abortada! A vida só pode sobreviver graças à generosidade de outra
vida.” Se a oração não leva à ação, deve ser questionada, pois a árvore vê-se
pelos seus frutos (Mt 7, 15-20).
Impressiona como o Papa denuncia, sempre que pode,
uma espiritualidade beata e clerical que fecha os cristãos em guetos seguros e
invoca “a esperança e a paz que necessitam e que suplico para todos os meus
irmãos no Batismo e em humanidade”. Por isso, convida os cristãos a “descobrir
novamente o rosto jovem e belo da Igreja, que brilha quando é missionária,
acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor.” De facto, temos que
reconhecer que uma certa espiritualidade clerical pode correr o perigo de nos
levar a Fátima, rezar muito, fazer grande penitência e muitos sacrifícios, mas
fechar os olhos a quem sofre ao nosso lado. Por isso, já no avião de volta a
Roma, numa resposta à jornalista Joana Haderer, da Agência Lusa, o Papa é
veemente: “Digo aos sacerdotes: fujam do clericalismo! Porque o clericalismo
afasta as pessoas. Fujam do clericalismo! – é uma peste na Igreja”. Já antes,
em outras intervenções, pedira que os cristãos e os padres fossem eclesiais,
mas nunca “clericalistas”. No Concílio Vaticano II, a Igreja de estrutura
piramidal deu lugar à Igreja Povo de Deus. Mas não admira esta advertência de
Francisco, já que a estrutura sublinhadamente clerical – a peste – parece
querer voltar em força, especialmente nalguns círculos urbanos específicos.
A cereja no topo do bolo: esta é, para os cristãos, a
Semana da Vida. Nem de propósito, no dia em que começa esta Semana da Vida, o
Papa dirige-se aos doentes como “o tesouro da Igreja”. Os tais, que esta
sociedade descarta, são o próprio Jesus Cristo. A todos os cristãos avisa que o
Cristo que está na Eucaristia é o mesmo que está nos nossos irmãos,
especialmente os que mais sofrem: “Amados peregrinos, diante dos nossos olhos,
temos Jesus escondido mas presente na Eucaristia, como temos Jesus escondido
mas presente nas chagas dos nossos irmãos e irmãs doentes e atribulados. No
altar, adoramos a Carne de Jesus; neles encontramos as chagas de Jesus.” Quer
dizer, acolher Jesus na Eucaristia, comungá-Lo, é precisamente a mesma coisa
que atendê-Lo nos irmãos que sofrem. É este o sentido do gesto do lava-pés que,
no Evangelho segundo S. João, ocupa o lugar central na Última Ceia. Porque “aquele
que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo
4, 20).
Dos doentes recusa-se a ter pena, mas pede-lhes que
não abdiquem da sua dignidade e do seu valor: “Não vos considereis apenas
recetores de solidariedade caritativa, mas senti-vos inseridos a pleno título
na vida e missão da Igreja. A vossa presença silenciosa mas mais eloquente do
que muitas palavras, a vossa oração, a oferta diária dos vossos sofrimentos em
união com os de Jesus crucificado pela salvação do mundo, a aceitação paciente
e até feliz da vossa condição são um recurso espiritual, um património para
cada comunidade cristã. Não tenhais vergonha de ser um tesouro precioso da
Igreja.” São tesouro porque a sua fragilidade, unida à de Jesus na cruz,
salva-nos. Que diferentes são os salvadores poderosos, belicosos e
autossuficientes que o mundo nos oferece.
Francisco deixa Fátima com a confirmação de que uma
Igreja que não vá ao encontro da vida sofredora, que não acolha, que não lute
pela defesa da vida e da qualidade de vida em todas as suas fases, não é a
Igreja de Jesus Cristo. Ao contrário de tantos que se passeiam na vida para
serem vistos, “A Virgem Mãe não veio aqui, para que A víssemos”. Veio para, em
nome de Cristo, nos enviar às periferias existenciais do mundo e aí levarmos a
alegria do evangelho.
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