Ler é
uma atividade indissociável da curiosidade e do desejo. É preciso aprender a
senti-la como uma necessidade interior
Conversava com uns amigos preocupados com o filho que anda agora pelos 17
anos. São ambos professores, os corredores de casa parecem uma biblioteca, mas
o filho não lê um livro. Às vezes, dão por si a olhá-lo como se olha um
estranho cuja língua e hábitos se ignoram. Não sabem como se formou o muro
cultural que os separa. Veem-no horas e horas retido no ecrã do telemóvel,
obsidiado por aquele retângulo brilhante, aos olhos deles fazendo nada.
Lamentam o que lhes parece ser uma dependência, mas sentem-se impotentes.
Quando tentam explicar-lhe que o ecrã é uma gaiola de vidro onde se deixa
aprisionar, o filho levanta a cabeça, olha-os também sem entendê-los, mas sem
intenção de substituir o que o ocupa por um livro qualquer. A primeira coisa de
que me recordei — e que lhes disse — foi uma frase do escritor Gianni Rodari:
“O verbo ler não suporta o imperativo.” Ler é uma atividade indissociável da
curiosidade e do desejo. É preciso aprender a senti-la como uma necessidade
interior, um gosto, uma alegria que pode até ser frívola e profunda ao mesmo
tempo, um encontro a que nos dispomos sem porquê. Não basta uma ordem ou um
conselho repetido. Falta uma iniciação que seja digna desse nome. E, a esse
propósito, lembrei-lhes o que dizia Rubem Alves: que era pela cozinha que
deveríamos sempre entrar numa sala de aulas, pois ensinar é a arte de despertar
a fome em alguém.
Mas
fiquei depois a pensar na história destes amigos e como ela se liga a um dos
problemas mais amplos, complexos e sofridos das nossas sociedades: o da
transmissão. A velocidade da mutação que o progresso tecnológico impõe vai
cavando uma distância cada vez maior entre as gerações. Entre pais e filhos há,
a esse nível, um afastamento que em outras épocas jamais ocorreria entre
gerações tão próximas, e precisamos de ganhar consciência disso. Um bom começo
talvez seja ativar caminhos de compreensão mútua entre adultos e
jovens/adolescentes. Os filhos precisam de compreender melhor o mundo dos pais,
aquilo que os apaixona, como é que eles chegaram aos seus pontos de vista, como
construíram a sua linguagem e os seus códigos, como foi o encontro deles com o
que consideram realmente importante. E os pais precisam de dar tempo aos filhos
(e a si mesmos) para compreenderem a gramática deles, sem imediatamente comparar
e corrigir tudo o que veem a partir da sua. Há um dado objetivo: o mundo está
em mudança, e isso não foi uma escolha dos filhos. Os pais obcecados com o
facto de os filhos não reproduzirem o mundo deles não reparam no esforço
duríssimo e solitário que os filhos fazem para aprender a funcionar com as
novas regras do tempo em que despontaram. Claro que tem de haver um equilíbrio.
É verdade que não conseguirmos passar às novas gerações um sincero amor pelo
património civilizacional e ético de que somos guardadores representará uma
perda inqualificável. Mas isso não se faz retirando os jovens do seu mundo, mas
colaborando para que eles ampliem sempre mais a experiência que lhes é própria.
Os filhos de hoje são os primeiros nativos digitais, coisa que até aqui se
desconhecia. Há insuficiências nesta nova condição? Certamente. Hoje, por
exemplo, a comunicação humana tende a funcionar em tempos rápidos e
simultâneos, sem pausas, sem espaço concedido à espera. Isso constitui um
empobrecimento que será preciso trabalhar. Mas há dados positivos. Um deles é a
personalização: os jovens veem e escutam o que querem, quando querem. Outro é a
capacidade de expressão. As novas gerações serão saudavelmente menos afásicas
do que as que as precederam.
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