É um dos grandes pensadores
do Portugal contemporâneo e do lugar do catolicismo no mundo. Em entrevista ao
PÚBLICO e à Rádio Renascença, José Tolentino Mendonça fala do Natal, do amor,
da poesia e do papel do Papa Francisco na reinvenção do papel da Igreja.
Com 51 anos, o padre e poeta José Tolentino Mendonça dirige a
Pastoral da Cultura e é vice-reitor da Católica
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José Tolentino Mendonça não tem dúvidas: o Papa
Francisco trouxe à Igreja Católica uma vitalidade que se julgava perdida e a
prova disso são as muitas pessoas que se reconciliaram com a fé cristã. “Está a
acontecer um pouco por todo o lado e como sinal, ao mesmo tempo, de uma cultura
que volta a ter disponibilidade para ouvir aquilo quer julgava que já não
queria ouvir mais.” A poucos dias do Natal falamos com o padre-poeta que gosta
de construir pontes entre crentes e não-crentes, entre fé e pensamento.
Há um Natal de antigamente e um Natal dos
dias de hoje?
As formas como vivemos o Natal não são indiferentes à
História, até porque o cristianismo é uma religião vertiginosamente histórica.
Há outras tradições religiosas para quem a História é mais ou menos
indiferente, porque apostam tudo na superação ou numa espécie de intervalo em
relação à História. O cristianismo pega na História de frente.
E, por isso,
tudo o que é o fluxo histórico tem uma tradução na vivência do cristianismo. O
próprio Natal, em si mesmo, é este cruzamento do eterno com a História e é
sempre através daquilo que a História pode ser em cada momento que nós
conseguimos olhar para o mistério da fé.
O Natal não foi uma coisa que aconteceu há 2000
anos. É um processo de revelação da História. Cada dia, cada hora, cada minuto
contam
Não faz sentido aquela expressão do
"antigamente é que era e hoje já não se vive o Natal com sentido"?
Não faz nenhum sentido, porque a mensagem de Jesus
perfura os tempos e dá-se a ver em cada circunstância histórica de uma forma
nova. O Natal não foi uma coisa que aconteceu há 2000 anos. É um processo de
revelação da História em que os cristãos, numa atitude messiânica, esperam a
segunda vinda de Cristo. Por isso, cada dia, cada hora, cada minuto contam.
O senhor é padre e poeta. São duas
profissões em vias de extinção no mundo louco em que vivemos?
É uma provocação curiosa. Aparentemente parece que
sim, que os padres e os poetas são animais em extinção. Eu diria que em
reconfiguração. Hoje, o padre é uma figura quase anónima no tecido da sociedade
mas, ao mesmo tempo, tem uma penetração diferente. É capaz de estar mais
próximo, e a quantidade de pessoas que hoje procuram o padre como um
interlocutor das suas vidas possivelmente só acontece porque diminuiu aquela
espécie de aura social que envolvia a figura do padre. É a mesma coisa em
relação aos poetas. Walter Benjamin fala do processo de secularização que
aconteceu também na poesia. De certa forma, a poesia perdeu a sua aura como
discurso heróico, ou explicativo, referencial, de uma determinada sociedade. O
que não quer dizer que a poesia tenha deixado de ser o sal da terra.
Até que ponto é que o mundo em que estamos
tem disponibilidade para ouvir o que a Igreja tem para dizer? É mais difícil
comunicar?
Não creio que seja mais difícil. Foi sempre difícil o
jogo da comunicação. Nós, por exemplo, lemos os textos das origens cristãs,
lemos o prólogo do Evangelho de São João, que é um texto icónico, e
ele diz-nos que o Messias veio até aos seus e os seus não o reconheceram. O
drama do não reconhecimento é um drama que atravessa por completo a construção
da origem cristã. Falarmos de dificuldades de comunicação, de chegar ao coração
do ser humano, de o assombrar com a luz de uma palavra, isso foi um processo
complexo em todos os tempos.
A poesia perdeu a sua aura como discurso explicativo
de uma sociedade. O que não quer dizer que a poesia tenha deixado de ser o sal
da terra
Não é mais agora do que já foi no passado?
Eu acredito que não, que cada época tem os seus
desafios próprios. Possivelmente, hoje as pessoas estão disponíveis inclusive
para dar uma segunda oportunidade ao discurso religioso. É curioso nós vermos
as multidões de admiradores incondicionais do Papa Francisco. Grande parte
dessas pessoas, vistas de um ponto de vista sociológico, estão a dar uma
segunda oportunidade à Igreja. São pessoas que nasceram num ambiente católico e
que se distanciaram por uma crise no processo de transmissão, por um qualquer
acidente biográfico de percurso, por uma crise de pertença em relação à Igreja.
Mas hoje, perante o discurso do Papa Francisco, apresentam-se sensibilizadas e
disponíveis para o ouvir e para buscar a Igreja. A quantidade de segundos
regressos é muito grande. Está a acontecer um pouco por todo o lado e como
sinal, ao mesmo tempo, de uma cultura que volta a ter disponibilidade para
ouvir aquilo que julgava que já não queria ouvir mais.
Sente isso no seu trabalho na Capela do
Rato?
A Capela do Rato tem características próprias. É uma experiência de cristianismo urbano e feito de portas abertas. É um lugar na fronteira...
A Capela do Rato tem características próprias. É uma experiência de cristianismo urbano e feito de portas abertas. É um lugar na fronteira...
Mas é na fronteira porque aquela marca
histórica da Capela do Rato se manteve, não porque esteja na fronteira da
cidade, até da cidade dita católica…
A cidade está cheia de fronteiras invisíveis.
Geograficamente é o coração da cidade, sociologicamente é um espaço percorrido
por múltiplas fronteiras, como todos os espaços são. Haver uma espécie de lugar
de portas abertas para um primeiro acolhimento, uma espécie daquilo que o Papa
Francisco usa habitualmente como metáfora da Igreja — um "hospital de
campanha" —, é alguma coisa que ao longo dos anos a Capela do Rato, como
aposta da Igreja de Lisboa, tem sido. E ali sinto muito isso. Sinto muita gente
tocada pelo testemunho do Papa Francisco e com vontade de refazer o seu próprio
percurso de relação com o cristianismo.
São pessoas que lhe chegam com esse
referencial do Papa Francisco, deste discurso das periferias? Elas sentem-se
outra vez chamadas a isso?
É como a parábola do Bom Pastor, que deixou as ovelhas no redil e foi à procura das ovelhas perdidas. A quantidade de pessoas que estão tocadas pelo exemplo do Papa Francisco e que no contar da sua biografia, da sua itinerância, referem o Papa Francisco e o seu discurso como uma palavra de hospitalidade que permitiu o clique, o momento do repensamento e da transformação, ou que fez acordar de novo o desejo de uma revelação espiritual… São múltiplas as pessoas, inúmeros os testemunhos, que vão nesta linha.
É como a parábola do Bom Pastor, que deixou as ovelhas no redil e foi à procura das ovelhas perdidas. A quantidade de pessoas que estão tocadas pelo exemplo do Papa Francisco e que no contar da sua biografia, da sua itinerância, referem o Papa Francisco e o seu discurso como uma palavra de hospitalidade que permitiu o clique, o momento do repensamento e da transformação, ou que fez acordar de novo o desejo de uma revelação espiritual… São múltiplas as pessoas, inúmeros os testemunhos, que vão nesta linha.
É curioso nós vermos as multidões de admiradores
do Papa Francisco. Grande parte dessas pessoas estão a dar uma segunda
oportunidade à Igreja
Mas esse apelo que o Papa faz para que os
católicos vão para as periferias, que não são só geográficas mas humanas e de
espírito, obriga a que a Igreja tenha de mudar. Estas comunidades que se sentem
mais interpeladas por isso, como a comunidade gay, ou os casais
recasados, toda a questão sacramental está em cima da mesa…
A Igreja tem de realizar como experiência central da
sua missão o acolhimento. E esse acolhimento muitas vezes tem faltado, porque
as pessoas se sentem mais excluídas do que incluídas num processo em que o
fundamental é o caminho que se faz. Não se trata de introduzir um relativismo
que torna tudo igual e uma espécie de indiferença ética...
Não há aggiornamento da
Igreja?
Não é disso que se fala, mas de uma renovada
capacidade e vontade de acolher. De uma Igreja comprometida com a
hospitalidade. E, nesse sentido, é uma Igreja que se reinventa a partir do
modelo de Jesus da Nazaré. Ele era acusado de ser amigo e de comer e beber com
publicanos e pecadores. Jesus, de facto, tinha essa prática. E nesse
acolhimento é que as transformações de vida se davam. O acolhimento não é um
prémio de bom comportamento. O acolhimento é o primeiro gesto — e é um gesto
absolutamente gratuito. O acolhimento da Igreja não é ideológico, não parte de
uma ideia. Parte das vidas concretas das pessoas, mostrando-se disponível para
fazer o caminho com cada uma, o caminho necessário. E, como diz o Evangelho,
“se alguém te pede para caminhar uma milha, caminha duas”. É essa disponibilidade
para um caminho longo que, no desafio do Papa Francisco, a Igreja tem que ter.
E depois, numa atitude proactiva, ele continuamente desafia a Igreja a sair, a
ser uma Igreja em saída, uma Igreja com espírito missionário. E o espírito
missionário não é apenas partir para territórios de missão distantes. Ele
vive-se hoje no meio da cidade, nesse espaço cheio de fronteiras e cheio de
muros invisíveis e de bloqueios existenciais em que hoje os cristãos são
chamados a ter uma consciência renovada e a criar efectivamente uma cultura de
acolhimento. Ninguém pode ser excluído do amor e da misericórdia de Cristo. E
essa experiência de misericórdia tem de ser levada a todos. Sejam os cristãos
recasados, feridos por experiências matrimoniais de naufrágio, seja a realidade
das novas famílias, sejam as pessoas homossexuais, que na Igreja têm de
encontrar um espaço de auscultação, de acolhimento e de misericórdia.
Qual é para si a principal marca deste
pontificado?
A principal marca é o método do Papa, que é, de certa
forma, um quase apagamento e desprendimento em relação àquilo que é a forma
exterior, o símbolo. A primeira reinvenção do Papa Francisco é a configuração
do próprio papado, a forma como um Papa pode ser Papa. Não vivendo no palácio
apostólico mas numa comunidade com outros padres, mais despojada, uma Igreja
com características mais sinodais, a valorização das conferências episcopais e
essa disponibilidade para acolher os últimos. Isso é o princípio da reforma.
Depois, a reforma, que começa por ser de método, traduz-se de facto num
recentramento evangélico da mensagem e da prática cristã. Nós substituímos
facilmente a centralidade da mensagem de Cristo por uma auto-referencialidade e
o Papa tem denunciado a auto-referencialidade da Igreja como um dos seus maiores
pecados. E, ao mesmo tempo que sacode a Igreja para que ela deixe o que ele
chama, na gramática bergogliana, de mundanismo — as cedências a uma
cultura de corte, de poder —, ele pede que a Igreja reganhe um perfume a
Evangelho, um cheiro a Evangelho. E sem dúvida que o Papa Francisco tem enchido
a Igreja deste cheiro a Evangelho.
Ninguém pode ser excluído do amor e da
misericórdia de Cristo. Sejam os cristãos recasados, sejam as pessoas
homossexuais
Mas tem sido alvo de críticas como há muito
um Papa não era. Há uma Igreja institucional, hierarquizada, que não se sente
confortável com este papado?
Aí é preciso distinguir alguns factos. O primeiro é
essa formulação de que este Papa é mais contestado que os outros. Isso será
verdade?
Sente isso?
Não, não sinto. O Papa Paulo VI, o Papa João XXIII, o
Papa João Paulo II, o Papa Ratzinger, todos eles conheceram também zonas de
contestação no interior da Igreja. O que acontece agora é que nós estávamos
habituados a que o Papa fosse contestado por uma ala mais à esquerda da própria
Igreja. O Papa João Paulo II foi muito contestado pelos teólogos da Teologia da
Libertação. Hoje, nós vemos o Papa Francisco ser contestado por uma ala mais
conservadora da Igreja e por alguns nomes importantes, mesmo cardeais, que de certa
forma estão dispostos a colocar o tradicionalismo acima da tradição.
Ou seja?
A tradição foi sempre o reconhecimento de que Pedro
era o garante da unidade, da comunhão. Hoje parece, em alguns posicionamentos,
que se quer quase tentar o impeachment do Papa, um impeachment simbólico...
Mas isso são casos pontuais. E, olhando para o Papa Francisco, é muito
interessante ver como ele conduz toda esta situação. Conduz com um fino sentido
de humor. E quando um pastor nos conduz com sentido de humor, eu penso que
estamos bem entregues.
TIAGO LUZPEDRO (PÚBLICO) e RAQUEL ABECASIS (Rádio
Renascença)
22 de
Dezembro de 2016
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