Resistindo à oposição dos mais próximos, Jesus
tornou-se, de facto, um pregador itinerante...
Jesus
permanece para nós um desconhecido, e em muitos sentidos. Ao pensar nele
assalta-nos o mesmo desconcerto dos seus concidadãos que o viram largar, ali
diante dos olhos de todos, o ofício de artesão que exercia e abraçar um
ministério de ensinamento e sanação, para o qual não o consideravam
qualificado. Ele era apenas um deles, naquela aldeia que não excederia os
seiscentos habitantes, a maior parte ocupados no cultivo do trigo e da
oliveira, outros de cerâmica para uso doméstico, outros ainda, como ele e a sua
família, dependentes da carpintaria, atividade necessária à manutenção do
povoado. Não reconheciam naquele conterrâneo alguém capaz de anunciar o Reinado
de Deus e ainda menos de alargar a compreensão sobre as suas implicações
históricas.
Mas resistindo à oposição dos mais próximos, Jesus tornou-se, de
facto, um pregador itinerante que percorria a Baixa Galileia em torno ao ano 30
do século I, anunciando a consolação divina nos conglomerados da região, como
cumprimento das promessas do Deus de Israel. Eram cerca de quinze as aldeolas
onde ele concentrou a sua itinerância, evitando as pujantes cidades
helenísticas da região: Tiberíades e Séforis, por exemplo.
Segundo o testemunho da mais antiga das narrativas
evangélicas, o seu primeiro gesto público é de natureza cultural e já em rutura
com o modo estabelecido: um rito de imersão praticado segundo o programa de um
pregador apocalíptico e fora de formato, João Batista. Ao fazer-se batizar
assim, Jesus partilha a aspiração à mudança disseminada nas margens do judaísmo
do seu tempo e assume a crítica que muitos faziam ao templo e ao sistema
alojado em Jerusalém. Com o desenvolvimento da sua missão, isso só se irá
sedimentar. Não passará muito tempo para o vermos protagonizar, com todos os
riscos inerentes, a releitura inovadora das instituições que deram identidade
messiânica a Israel: não só o templo, mas também a terra e a lei. Algo de
inédito começava. Não admira que a questão que persegue Jesus, do princípio ao
fim, seja a da origem da autoridade com que ele ousa divergir do status quo.
As suas
palavras e ações, seguidas não só por multidões de curiosos, mas por um bando
que passa a acompanhá-lo para toda a parte, pedem para ser lidas como
manifestação da presença compassiva de Deus: “O Espírito do Senhor está
permanentemente sobre mim, pois me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me
a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, a
restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o
ano aceitável do Senhor” (Lc 4,18-19). Jesus vinha colocar em perspetiva a
realização da salvação de Deus, salvação que, segundo ele, atuava já no
presente: na dignificação da vida para todos e na capacidade de reconciliar os
distantes (doentes, endemoninhados, pecadores, estrangeiros...), esse coral de
segregados das várias culturas inscritas naquele pequeno território (a cultura
judaica, a helenística, cananeia e romana). O constante retrato que os
evangelhos dão de Jesus como comensal e amigo dos pecadores assinala essa vontade
firme de cruzar as fronteiras, que eram morais e de etnia, género, cultura ou
de classe. Todas estas escolhas ficam bem patentes nas suas parábolas, a forma
de comunicação por ele privilegiada. Essas curtíssimas narrativas, entre o
enigmático e o poético, colocam em crise a imagem ordinária e convencional do
mundo, fazem irromper novas possibilidades em situações supostamente
encerradas, reinventam a vida.
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