Usamos
os outros em função das nossas necessidades: verdadeiramente não os encontramos
Uma
experiência que infelizmente se vai propagando é a de algumas consultas médicas
em que o médico praticamente não olha para o paciente. Ele surge por detrás de
uma secretária, diante de um computador, e nos 15 ou 20 minutos que dura o
encontro ocupa-se sobretudo a preencher um relatório informático. As perguntas
sucedem-se, mas o médico tem os olhos colados ao teclado. A técnica torna-se assim
o fator principal e depressa se converte em sistema. A informação trazida pelo
olhar sai menorizada: é como se, de repente, nos tornássemos descrentes em
relação às suas possibilidades. A questão que, no entanto, fica é se podemos
examinar (e nem falemos já de curar) aqueles que não chegamos a ver.
Mas o
empobrecimento que a aceleração traz ao olhar não acomete apenas o âmbito
clínico: está por todo o lado. Recordo-me da preocupação e da ironia certeira
com que Sophia de Mello Breyner Andresen o descreve em poemas do último livro
que publicou em vida, “O Búzio de Cós”. Aí denuncia o ativismo em que caímos,
onde “o ouvido não ouve a flauta da penumbra”, onde “o pensamento nada sabe dos
labirintos do tempo” e “o olhar toma nota e não vê”. Num poema particularmente
incisivo, chamado ‘Turistas no Museu’, lamenta que se tenha perdido “o antigo
cismar demorado da viagem” e comenta que as fotografias que obsessivamente
tiramos são, no fundo, para nos desobrigarmos rapidamente uns dos outros e da
realidade. E não assistiu ela ao triunfo das selfies!
Trocamos com
demasiada facilidade a contemplação pela obsidiante acumulação de imagens, a
perscrutação pelo saber prefabricado. Atropelamos a vida com esta espécie de
atordoamento que nos cega. Em vez do encontro, a que só um olhar disponível e
fundo nos faz aceder, esbarramos uns nos outros pensando extrair daí sentimento
e sentido. E isso vê-se tanto nas coisas grandes como nas pequenas, naquelas
onde as nervuras do quotidiano se estruturam. Na sua obra “Minima Moralia”,
Adorno refere, por exemplo, o modo grosseiro como passámos a tratar as portas,
desaprendendo como fechá-las de forma suave, cuidadosa e completa. Diz ele: “As
dos automóveis e dos frigoríficos devem atirar-se; outras tendem a fechar-se
por si mesmas, habituando assim os que entram à indelicadeza de não olharem
para trás nem de se fixarem no interior da casa que os acolhe.”
O olhar atento
permitir-nos-ia, talvez, vencer o encadeamento trazido por duas forças que
tiranizam a vida contemporânea: a indiferença e o consumo. Ambas atuam em
direções diferentes, mas depressa coincidem na desqualificação do olhar que
dedicamos uns aos outros e ao mundo. A indiferença representa o alheamento
total, como se não reconhecêssemos o valor ou o significado de uma determinada
existência. Escolhemos passar ao lado e ignorar. Olhamos, mas não vemos nem
queremos ver. O consumo (e também o há nas relações interpessoais, não apenas
no que respeita aos bens) supõe, pelo contrário, a supressão de toda a
distância. À sua maneira é também uma forma de ignorar o outro, mas agora pelo
movimento invasor, pela devoração e pela posse. Usamos os outros em função das
nossas necessidades: verdadeiramente não os encontramos. Por isso, é tão
importante reconhecer que só a atenção dota o olhar de uma significação ética.
Só somos justos com aqueles que miramos demoradamente, num exercício que coloca
a hospitalidade como condição do conhecimento. Ou mesmo como condição do
resgate. Não é por acaso que Simone Weil, que ao tema dedicou uma agudíssima
reflexão, escreveu que “o que nos salva é o olhar”.
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