Dia de Todos os Santos e o Halloween

Doçuras e travessas, bruxas e santos, celtas e americanos. Este fim de semana celebra-se a vida... e a morte. O que têm o Halloween e Todos os Santos em comum? Uma linha ténue entre a Terra e o Além. Todos os anos, na manhã de 1 de novembro, Maria do Céu sai de casa para entrar no cemitério de Taveiro, em Coimbra. Ao lado do portão de metal, que tem a cruz de Cristo num lado e uma caveira do outro, há sempre uma florista com plantas da época. Maria do Céu é cliente fiel da florista e compra orquídeas, gipsófilas, fetos reais e crisântemos. Um grande ramo de flores, suficiente para homenagear todos os membros da família que já morreram. Enquanto cumpre o ritual – limpar as campas de mármore, acender as velas vermelhas, colocar as plantas na jarra e rezar -, um grupo de crianças percorre as ruas da aldeia do Arrabal, em Leiria. São amigos de vizinhança, alguns primos ou irmãos, e vão com sacos de pão feitos na escola bater à porta dos vizinhos. “Oh tia, dá bolinho?”, costumam gritar. E do outro lado da porta, que se abre, chegam rebuçados, castanhas, algumas moedas (os tostõezinhos) ou então o dito bolinho, feito com frutos secos e erva doce.
É assim — com pequenas variações ao longo do País –, que se vive o Dia de Todos os Santos, em Portugal. Ou se vivia, até 2012, ano em a crise obrigou a diminuir o número de feriados – civis e religiosos -, e a Igreja cedeu o seu 1 de novembro. Agora, o hábito é cumprir estes rituais no domingo anterior à data. Antes as campas, de terra, eram cobertas por completo de flores, de forma muito semelhante ao que acontece na celebração do Dia dos Mortos no México. Mas quando começou esta celebração? A origem do Dia de Todos os Santos Para chegarmos à implementação do Dia de Todos os Santos é preciso recuar ao tempo dos celtas. Este povo que passou pelo território que é hoje Portugal celebrava o arranque do inverno com dois objetivos: apaziguar os poderes do outro mundo – isto é, as forças do Além, onde estariam as almas dos mortos – e pedir a abundância nas colheitas futuras. Quem o explica é o padre Anselmo Borges, teólogo e professor da Universidade de Coimbra. Nesta festa, a Samhain, os celtas recordavam os antepassados “concentrando o sagrado num tempo e lugar determinados”. Depois acendiam o “primeiro fogo”, que tinha um outro significado: a vida. O Samhain era celebrado aquando da chegada do inverno, quando a natureza parecia estar “adormecida”. À época, os celtas usavam um calendário lunar que dividia o ano em duas épocas, quente e fria. Depois de tempos de fertilidade, era altura de manter a esperança em boas colheitas. Como? Acendendo a tal fogueira, contrariando o ambiente sombrio da noite que chegava cedo, organizando verdadeiros banquetes e bebendo “até perder a razão”, como descreve o padre Anselmo Borges. Era o réveillon da fé celta. Este tipo de celebração não era, ainda assim, exclusivo dos celtas: também os romanos organizavam os saturnais, que funcionavam como uma passagem de ano espiritual, com grandes festas com muita comida e diversão. O Dia de Todos os Santos nasceu quando Gregório IV estava em frente à Igreja Católica. Estávamos no ano 835 d.C.. O processo de Cristianização – conversão ao credo cristão – continuava através da proliferação dos ensinamentos dispostos na Bíblia. Foi por isso que o Papa Gregório IV escolheu o dia 1 de novembro para celebrar todos aqueles que morreram com “uma vida plenamente realizada, que são exemplos de vida e estão na glória de Deus”. Neste dia, acredita-se que a fronteira entre a vida na Terra e a vida divina estava enfraquecida e portanto podia haver “contacto entre os vivos e os mortos do Além”. É uma forma de homenagear “os heróis da fé”, acrescenta o padre. Este é um capítulo da história, mas a criação do Dia de Todos os Santos também juntou o útil ao agradável. De acordo com a explicação do padre Anselmo Borges, os cristãos já celebravam os mártires, aqueles que celebravam até à morte a obra e a palavra de Jesus, no século II. A Igreja Católica festejava a vida de um santo em cada dia do ano e este era um modo de venerar aqueles que “intercediam a Jesus pelos humanos”. A certa altura, o número de santos aumentou (em consequência da perseguição dos romanos) e então foi necessário criar um dia em que se celebrassem todos eles. Halloween: um Dia de Todos os Santos “made in USA” Hoje, o Dia de Todos os Santos está influenciado por um fenómeno americano cuja celebração atravessou o Oceano até chegar à Europa. O Halloween tem uma origem semelhante à festividade católica e surgiu nos Estados Unidos também por via dos celtas, ou seja, depois da emigração em massa dos irlandeses, povo de origem celta, para o continente americano no século XIX. Mas aqui, a festa ganhou outro cunho: a crença de que a barreira entre vivos e mortos está mais vulnerável nesse dia levou os americanos a procurar celebrar o contacto com forças sobrenaturais negativas, mais sombrias, misteriosas e maléficas. Na noite de 31 de outubro para 1 de novembro, as crianças americanas mascaram-se de criaturas assustadoras – como bruxas, fantasmas ou zombies, por exemplo – e também elas tocam à campainha dos vizinhos em busca de comida. Dizem “doçura ou travessura” e os vizinhos decidem se abrem a porta. Mas se não o fizerem com recompensas (leiam-se doces), habilitam-se a ver ovos atirados contra a janela na manhã seguinte. Para se entender melhor a relação evidente entre o Halloween e o Dia de Todos os Santos, olhe-se para a origem da palavra: “Halloween” vem da expressão “All Hallows Eve”, isto é, “Véspera de Todos os Santos”. É também dos celtas que as celebrações do Halloween herdaram o típico jogo americano em que as pessoas tentam apanhar só com os dentes uma maçã dentro de uma taça cheia de água. Antigamente, os celtas acreditavam que o contacto com as entidades divinas podiam ajudá-los a entender o futuro e usavam esse jogo para tentar adivinhar com quem iriam casar. E o Dia dos Finados? Mas a festa não acaba aqui: a 2 de novembro ainda é dia de celebrar a vida e a morte. Apesar de as pessoas aproveitarem o antigo feriado de dia 1 ou o domingo mais próximo a este dia para homenagear os entes queridos que já partiram, o Dia dos Finados é oficialmente a 2. Com uma pequena diferença: é que os finados são aqueles que estão no purgatório à espera de julgamento antes de chegarem ao céu. Esta celebração foi implementada pelos monges de Cluny, em França, no século IX. A New Catholic Encyclopedia afirma que “durante toda a Idade Média era popular a crença de que, nesse dia, as almas no purgatório podiam aparecer em forma de fogo-fátuo, bruxa ou sapo”. Não existe nenhuma referência bíblica ao Dia de Todos os Santos, isto é, nenhuma passagem da Bíblia fala claramente sobre a necessidade de se implementar um dia para celebrar os “heróis da fé”. Mas há passagens em que a Bíblia aconselha os cristãos a evitar rituais que os coloquem em contacto direto com os mortos. “Como é que o certo pode ter alguma coisa a ver com o errado? Como é que a luz e a escuridão podem viver juntas? Como podem Cristo e o Diabo estar de acordo? O que é que um cristão e um descrente têm em comum?”, pode ler-se no livro de Coríntios. Em Portugal, o dia 1 de novembro traz um outro marco da história. Foi neste dia, em 1755, que um grande terramoto sacudiu Lisboa e destruiu grande parte da capital, quando milhares de pessoas assistiam às missas do Dia de Todos os Santos. A partir daí, e para assinalar a data que destruiu as casas de várias pessoas atirando-as para a pobreza, as crianças corriam as ruas a pedir “pão por Deus” para receber comida. 

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