Vivemos hoje em plena era tecnológica, o
triunfo da correção automática. Telemóveis, iPhones, iPads… Os teclados
colocados à nossa disposição são tão ágeis que nem precisamos de olhar para
eles. Podemos digitar uma mensagem a uma velocidade recorde, sem especiais
preocupações, pois o automatismo do dispositivo vai alterando e (supostamente)
corrigindo os nossos erros de escrita. A publicidade, cada vez mais agressiva,
explica que o corretor automático tem a enorme vantagem de nos fazer poupar
tempo. Mas tempo para quê? Nas relações interpessoais existe também a tentação
da correção automática. Quando, por exemplo, nos agarramos como a um totem à
letra da lei, ao ditado de uma tradição, aos escritos de um ponto de vista sem
olhar a mais, como resolução para todos os problemas que surjam. Ou quando
desatamos a corrigir os outros por tudo e por nada. Nem precisamos de olhar
para as pessoas. Basta-nos citar maquinalmente o número da regra que estão a
infringir naquele momento, ou a nossa prescrição avulsa que resolve tudo.
Sem
dúvida que dessa forma se poupa tempo. Mas sabemos que a vida não é assim. A
vida é uma construção paciente. A sua maturação, não só a externa mas também a
interior, segue um processo delicadíssimo. Os seus fios são ténues e frágeis
mesmo quando parecem longos e indivisíveis. Se quisermos chegar à fonte
escondida de um coração, temos de aceitar andar muito devagar. Pode ser um
exercício extenuante, mas não há outra forma. O termo que mais vezes vem
utilizado para designar o ato de correção, tanto no grego clássico como nos
textos cristãos das origens, é noutheteîn, que significa literalmente pôr no
coração, colocar na sua mente, prestar atenção a. O contrário, portanto, da
indiferença ou do confronto impreparado e prepotente, que são as nossas
patologias mais frequentes na relação com os outros e com as suas fraquezas.
Platão, no diálogo denominado Eutidemo (248e), assina a frase seguinte.
“Amo-te, mas corrijo-te com amizade”, o que já de si é um programa. O termo
será depois muito utilizado por São Paulo e pelo ambiente paulino como palavra
que deve reorientar, mas sem esmagar ou exasperar, aquele que a recebe. É, por
exemplo, interessante olhar a sucessão de verbos que nos surge em 1
Tessalonicenses 5, 14: exortar, corrigir, encorajar, amparar e suportar. Estes
verbos iluminam-se e explicam-se mutuamente.
Por sua vez, o termo latino corrigere
(cum-regere) significa reger, governar, inspecionar juntamente, acentuando
assim a dimensão relacional que deve estar presente na experiência da correção.
O ato de corrigir implica necessariamente afeto, atenção, cuidado, relação. É
alguma coisa que se faz a par. A correção não é, por isso, monopólio de
ninguém. É uma ferramenta para construir vida, e vida qualificada. Para
corrigir é preciso este conhecimento empático e franco, esta benevolente
abertura ao outro, esta sabedoria que não sublinha a falta ou a fraqueza mais
do que a dignidade da pessoa.
A correção, portanto, não só não é
automática como não deve ser espontânea. Não é uma descarga emocional que
mistura impaciência e frustração. Não é uma explosão de humor. A correção supõe
uma aprendizagem. Seria, por isso, absurdo considerar a correção como um fim:
ela é uma mediação colaborativa, um suporte para a construção esperançosa.
Ajuda a ser. Nada mais. Corrigimos melhor quando encaramos de forma solidária a
dificuldade em jogo e apostamos com confiança na superação da prova. E temos
sempre de evitar que a correção seja a única forma de relação que temos com
alguém. Quem só corrige não corrige.
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