Os
filhos que cuidam dos pais por amor são verdadeiros salva-vidas. Salvam da
solidão, da exclusão, do abandono, do esquecimento, da indigência moral e
emocional em que vivem muitos velhos.
A
partir dos quarenta e muitos, cinquenta e poucos, todos começamos a sentir que
os papéis se invertem nas famílias e caímos na conta de que mais ano, menos
ano, seremos convocados a cuidar dos nossos pais. Confrontados com doenças
crónicas, ou chamados de emergência depois de acidentes cardiovasculares
cerebrais, quedas e até atropelamentos provocados por distração, falta de
audição ou visão, damos connosco atordoados e aflitos, sem saber o que pensar.
Pior, sem sabermos o que fazer. Como agir, a quem recorrer, como ajudar?
O
‘como’ é a grande questão que atravessa as nossas vidas. Saber como, é,
porventura, mais importante do que saber o quê e porquê. Muitas vezes nem
chegamos a perceber os ‘porquês’ do que nos acontece, mas nunca poderemos
evitar os ‘como’. O problema é que a vulnerabilidade dos nossos pais – mesmo
quando eles não se queixam ou tentam disfarçar! – consome-nos, para-nos e
obriga-nos a repensar muita coisa. E a aprofundar este grande ‘como’, para
percebermos como havemos de fazer para os ajudar a viver essa etapa de novas
dependências, como podemos ficar mais próximos ou estarmos mais presentes sem
termos que renunciar à nossa vida pessoal, profissional e conjugal.
Ver
envelhecer os pais não é um processo fácil e embora seja natural, traz muita
ambivalência ao coração. Ficamos tristes por eles e com eles, mas ao mesmo
tempo temos medo que as suas dores, as suas debilidades e a sua perda de
capacidades se eternizem. Sofremos porque nos sentimos muitas vezes impotentes
perante o seu seu sofrimento e a sua fragilidade crescente, mas também porque o
envelhecimento dos pais nos remete fatalmente para o nosso próprio
envelhecimento, que é assim uma espécie de tabu individual. Uma filha não gosta
de ver a imagem da degradação física da sua mãe porque mesmo sem querer pensa
no seu próprio corpo dali a 20 ou 30 anos. Um filho resiste muitas vezes a
cuidar do seu próprio pai, ou chega a afastar-se dele na velhice, pelas mesmas
razões. Porque lhe custa lidar com a imagem avelhentada de um pai que deixa de
ser forte e protector, que de alguma forma deixa de ser o seu pai-herói.
A
realidade dos filhos que começam a ter que ser pais dos seus pais é tremenda e
por vezes impõe-se de forma brutal. Pode chegar através de pequenos sinais como
as lendárias perdas de memória ou as clássicas quedas em casa e tropeços na
rua, mas também pode anunciar-se através de doenças graves que implicam
tratamentos delicados ou cuidados continuados que envolvem questões sobre as
quais nunca apetece falar (estou a pensar na temível incontinência, por exemplo,
mas também na perda de autonomia para fazer a higiene própria ou na
incapacidade de tratar da alimentação 4 vezes por dia, todos os dias, e ainda
nas noites passadas em branco) e que muitos filhos maiores já sabem porque já
experimentaram. Daí o pavor de muitos homens e mulheres ainda entre os quarenta
e os cinquenta. Temem que estas situações se agravem e eternizem obrigando-os a
adiar ou até a pôr de lado a sua realização pessoal e profissional, abdicando
de uma vida que legitimamente sonharam para si mesmos e não contemplava o
pesadelo de uma mãe, uma sogra, um pai ou um sogro doentes, acamados ou a
precisarem de ser lavados e alimentados todos os dias.
À
medida que o tempo passa e as doenças avançam percebemos que não existem pais
perfeitos nem filhos ideais. Todos passamos pela experiência dos sentimentos
contraditórios, pelas fases de maior nostalgia em que apetece ser apenas filho,
voltar à infância (à ideia de uma infância protegida, seja ela real ou
idealizada), recusar o envelhecimento, fingir que está tudo melhor do que
realmente está, mas também por momentos de zanga, frustração, impaciência,
raiva, confusão, alheamento e rejeição, que alternam inexplicavelmente com
tempos de ternura, dedicação, amor e compaixão. Trazemos em nós tudo isto e
muito mais. Dizem os especialistas que o caminho é aceitar esta mesma
ambivalência tentando focar mais no amor e menos na culpa. Percebo os
especialistas, pois nada é mais erosivo na relação entre pais e filhos do que
os sentimentos de culpa mútuos. São erosivos e empobrecedores, aliás. Não levam
a lado nenhum e fazem-nos esbarrar constantemente em muros de silêncio que
rapidamente se tornam intransponíveis e nos afastam irremediavelmente uns dos
outros. Os pais, porque se sentem culpados de estarem dependentes e darem tanto
trabalho; os filhos por não estarem a ser capazes de cuidar, de acompanhar e
mimar os pais como deviam e gostariam.
No
meio de tanta vulnerabilidade e dependência também há boas notícias. As
relações familiares muitas vezes fortalecem-se na adversidade. É um mistério
que assim seja, mas acontece. Irmãos desavindos ou pouco próximos no dia-a-dia
são capazes de largar tudo para socorrer outro irmão a braços com a realidade
de um cancro terminal, uma situação de demência ou um cúmulo de debilidades dos
pais. Já vi isso acontecer muitas vezes nos anos em que fiz voluntariado de
cabeceira. Mas também já vivi isso com as doenças dos meus próprios pais. Somos
quatro filhos vivos e temos vidas muito diferentes e muito exigentes, mas
sempre que o pai ou a mãe precisam vamos a correr. Fomos e somos mais capazes
de viver bem as situações más, do que de prestar atenção às fases fáceis e
boas. Nessas alturas andamos todos mais absorvidos com as coisas de cada um,
com as exigências da vida pessoal, profissional e familiar de cada um. Até
podemos parecer distantes, mas perante a notícia de um tumor cerebral ou de uma
hospitalização de emergência, criamos tacitamente turnos em que nos revezamos
para tudo. Sejam banhos ou compras de supermercado, idas aos médicos e
tratamentos, ou permanência à cabeceira. Nisto somos iguais a todos os irmãos e
irmãs a quem já aconteceu terem um pai ou uma mãe a precisar de cuidados 24h
sobre 24h.
A
boa notícia é esta de nas fratrias poder haver uma lógica de entreajuda em que
todos contribuem e se complementam. Entre irmãos os papéis são quase sempre
diferentes e pode haver um mais púdico, outro mais capaz de dar banhos e tratar
da higiene, outro que gosta de cozinhar e outro ainda que gosta de levar a
passear. Há mil maneiras de exprimir os afectos pelos pais e a situação só se
complica quando os filhos não se complementam, não se ajudam ou descartam o seu
papel sobrecarregando um deles. Ou, claro, quando os filhos são únicos e se
sentem mais impotentes.
A
outra boa notícia no meio das doenças e sintomas de envelhecimento que geram
dependências é poder haver um tempo reparador em família. Parece difícil, posto
desta forma, mas mais uma vez falo pelo que vi e vivi. Há uma dimensão
reparadora na proximidade familiar quando os pais ficam vulneráveis. Seja
porque pais e filhos sentem necessidade de se perdoarem mutuamente por razões
ou questões antigas, seja porque existe a chamada ‘dívida de gratidão’ que
atravessa o coração dos filhos perante quem lhes deu vida e quem cuidou deles
na fragilidade extrema dos primeiros tempos de vida, na verdade o tempo da
doença prolongada pode ser muito reparador. Pode restaurar relações e
fortalecer laços. E também pode desfazê-los para sempre, claro, se tudo isto
for vivido de forma negativa ou não houver possibilidade de cuidar.
Os
filhos que cuidam dos pais por amor são verdadeiros salva-vidas. Salvam da
solidão, da exclusão, do abandono, do esquecimento, da indigência moral e
emocional em que vivem muitos velhos. Podem sentir um enorme stress interior e
a tal ambivalência de sentimentos, podem até ter pavores de que tudo vá de ‘mal
em pior’, mas têm a possibilidade de se reconciliar em vida, de agradecer, de
dar de volta aquilo que receberam, e até de aceitar a fragilidade, a
dependência e a sua morte. Podem ser obrigados a viver tudo isto no auge das
suas próprias crises existenciais, no seu tempo de balanços de vida, de crises
e rupturas, de luto definitivo por uma adolescência que já não volta, mas tudo
isto vale a pena se quisermos ser para sempre filhos dos nossos pais e cumprir
o nosso papel até ao fim. Mesmo que temporariamente pareça que somos pais
deles.
A
minha experiência de cabeceira com estranhos, mas também de filha que tem os
pais a morar em casa há anos, encerra e revela aquilo que Marie de Hennezel
resumiu de forma maravilhosa : “Cuidar de um pai velho vai para além da relação
filial. Um ser humano ao ajudar outro ser humano vulnerável aprende a ser
melhor”.
Laurinda
Alves
In: http://observador.pt/opiniao/quero-continuar-filha-dos-meus-pais/, consultado em 29.03.16
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