Passada a
primeira semana de trabalhos sinodais, deixo uma resenha de pontos ventilados,
como resumo rápido e pessoal do que vai acontecendo.
Lembro que a
reflexão incide sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da
evangelização”, não se detendo em alguns temas que têm polarizado a atenção
mediática, como o que se refere aos “divorciados recasados”, ou às “uniões de
pessoas do mesmo sexo”. Têm sido de facto abordados, mas não constituem o cerne
da reflexão sinodal.
Esta incide
sempre, direta ou diretamente, na família em geral – não apenas no seu núcleo
conjugal – e no modo mais adequado de propor a respetiva visão cristã e de
formar os crentes para a sua constituição e vivência.
Muito importante
tem sido a presença cordial do Papa Francisco, bem como o foram as suas
palavras iniciais, insistindo em que falássemos com grande franqueza (parresia)
e ouvíssemos com humildade (cf. L’Osservatore Romano, 6-7 out. 2014, p. 12).
E assim tem sido, com disponibilidade para falar e ouvir opiniões concordes ou
eventualmente discordes, sobre pontos concretos e com sensibilidades
distintas.
Nunca está
em causa a visão cristã do casal e da família, a partir das palavras de Cristo
e da Tradição eclesial, ao mesmo tempo idêntica nas afirmações essenciais e
dinâmica na relação com as situações e a própria evolução humana e social.
Pouco a pouco, fica mesmo mais claro o que é essencial e o que devemos fazer,
para que tal essencialidade se reapresente agora, face aos “desafios” que a
atualidade nos lança.
Do que se
tem dito e ouvido, sobressai a consciência do contraste entre muito do que a
sociocultura globalizada difunde e sugere sobre a conjugalidade e a família e o
que a visão crente e cristã entende sobre elas. Rarefação dos vínculos
tradicionais e individualização das decisões e das existências,
desinstitucionalização e efemeridade dos compromissos, desvalorização do que
não seja imediato e logo compensatório: estas e outras notas tornam-se
mentalidade e sensibilidade generalizadas, sem grandes diferenças à escala
mundial. Foi por isso acentuado que «os cristãos devem saber responder
adequadamente às verdadeiras e próprias emergências que nos chegam, além do
mais, numa atmosfera cultural em crescente contraste com os valores propostos
pela Igreja […]. Referem-se as posições ideológicas que se difundem e tendem a
influenciar os próprios ordenamentos jurídicos» (L’O.R., 9 out., p.
7).
Daqui que o
Sínodo vá sublinhando a necessidade e a urgência de esclarecimento cristão
sobre a realidade familiar e de tomar este ponto como verdadeiramente
prioritário para as nossas comunidades, movimentos e grupos. Apoiar sempre a
família, na respetiva formação e na complementaridade e intergeracionalidade
dos seus membros, evidencia-se como a base de toda a pastoral a empreender.
Posso até
dizer que este ponto é o mais saliente dos presentes trabalhos sinodais, tal é
a consciência do desafio sociocultural que a família cristã tem pela frente.
Salientou-se, a propósito, o lugar do testemunho familiar cristão, como neste
resumo de várias intervenções: «Falou-se da importância de percorrer a via do
testemunho para uma eficaz preparação do matrimónio, sem nos preocuparmos com a
possibilidade de um percurso formativo mais sério fazer diminuir o número de
esposos». E chegou a dizer-se que tudo se há de fazer «para que a Igreja não
passe de “hospital de campanha” a “morgue” em que se multiplicam as autópsias
de matrimónios defuntos» (cf. L’O.R., 8 out., p. 8). Parecendo forte a
imagem, não é menos real a constatação dos fracassos conjugais que tantos
problemas trazem aos próprios e aos respetivos familiares.
O Sínodo não
ilude a questão, nem as consequências sacramentais, no caso de divorciados
recasados. Tem sido ponto recorrente, em contraste com o primeiro, acima
indicado: «O sínodo voltou a refletir sobre os casais em dificuldade, os
divorciados recasados. A Igreja deve apresentar não um juízo mas uma verdade.
Quanto ao acesso à Eucaristia, reafirmou-se que não é sacramento dos perfeitos
mas dos que estão a caminho» (ibidem). Sendo necessário, antes, durante
e depois, estar de facto “a caminho”, ou seja, em conversão permanente – para
todos e especialmente para os casos referidos. Da realidade vivida ao desígnio
inultrapassável de Cristo há sempre caminho a percorrer, caminho aberto…
Muitas
referências são feitas também à necessidade de agilizar os processos de
verificação da validade dos matrimónios celebrados, quando há razões para tal.
Como, por exemplo: «Antes de mais, acentuou-se em várias intervenções a
necessidade de acelerar o processo canónico para o reconhecimento das nulidades
matrimoniais, para que os fiéis não fiquem privados dos sacramentos por muito
tempo» (L’O.R., 9 out., p. 7).
E o resumo
mais fiel de quanto se disse das “situações “irregulares” será este: «Os padres
sinodais explicaram detalhadamente as suas razões sobre a admissão ou não dos
divorciados recasados à Eucaristia. Com posições diversas. Também se contaram
histórias particulares de pessoas que vivem em condições de sofrimento. Por
exemplo, evidenciou-se a necessidade de distinguir entre os que abandonaram
injustamente o cônjuge e os que, pelo contrário, foram abandonados
injustamente. Registaram-se intervenções significativas, seja de quem acha que não
é possível introduzir a comunhão para os divorciados recasados, seja de quem
convida ao discernimento das várias situações, para não praticar uma pastoral
do “tudo ou nada”» (cf. L’O.R., 10 out., p. 8).
Nestes dois
pontos se tem principalmente insistido: a necessidade de fazer da família,
cristãmente entendida, e da pastoral familiar, continuamente exercitada, o
critério de ação das nossas comunidades, assim mesmo transformadas em “famílias
de famílias”; e o atendimento positivo dos casos de dificuldade ou fracasso
conjugal, na sequência do que tem sido o desenvolvimento da doutrina e da
prática eclesial.
Pode aliás
lembrar-se a evolução verificada, do Código de Direito Canónico de 1917,
que tratava os divorciados recasados como bígamos e infames, que podiam ser
atingidos pela excomunhão e interdição pessoal, ao Código de Direito Canónico
de 1984, que não prevê tais punições, mas restrições menos graves; ou às
exortações apostólicas Familiaris Consortio (João Paulo II, 1981) e Sacramentum
Caritatis (Bento XVI, 2007), que falam com afabilidade de tais cristãos,
afirmando que não são excomungados, mas antes convidados à participação
eclesial, ainda que sem confissão sacramental nem comunhão eucarística,
enquanto durar tal situação pessoal.
Também para
aqui apontou o Cardeal Kasper na sua alocução ao consistório de fevereiro
passado – feita a convite do Papa Francisco, recordemos –, quando disse
estarmos numa situação semelhante à do Concílio Vaticano II, ao tratar da
liberdade religiosa. Na minha intervenção sinodal, referi-me explicitamente a
este ponto, nos seguintes termos: «Há cinquenta anos, não foi propriamente
fácil aos padres conciliares conjugarem a liberdade religiosa com a
objetividade da verdade revelada. Mas acabaram por incluir nesta mesma objetividade
o espaço que Deus dá a cada um para prosseguir na descoberta da verdade e na
adesão a ela (cf. Declaração Dignitatis Humanae, 2). Creio que, com as
devidas distinções de tema e solução, há neste importantíssimo ponto conciliar
uma luz oportuna para o que nos ocupa agora, a bem da família e da sua dimensão
sacramental, a manter e a recuperar sempre que possível».
Seguem-se
nestes dias as reuniões de grupo e a preparação da mensagem (nuntius)
final, com o mesmo clima de franqueza e humildade que o Papa Francisco desejou
e felizmente se verifica. Sem esquecer que esta é apenas uma etapa preparatória
do Sínodo de 2015 e do que o Papa decidir depois. Rezemos entretanto, para que
o Espírito nos conduza àquela “verdade total” que Deus nos ofereceu em Cristo e
só pouco a pouco se desvenda, sempre idêntica a si mesma e continuamente
desdobrada na história.
Roma,
12 de outubro de 2014
+
Manuel Clemente
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