«O que resta do Pai?», pergunta-se o psicanalista Massimo Recalcati no seu oportuníssimo estudo sobre a paternidade na época pós-moderna. A preocupação que partilha com os leitores é esta: resta muito pouco. E para classificar os tempos que correm ele recupera uma expressão de Jacques Lacan: «a evaporação do pai». De facto, a nossa cultura tem praticado, com razões mas sem razão, uma demolição sistemática da figura do pai. O pai deixou de ser referência de valor para avaliarmos o sentido, para delinearmos a fronteira do bem e do mal, da vida e da morte. Vivemos muito mais uma suspeita permanente em relação ao que o pai representa ou mergulhados num luto obsidiante, promovendo o desencanto e a incerteza ao estatuto de novas formas de felicidade (e de ilusão). O que defende Recalcati é que a figura do pai precisa de ser recuperada.
Mas não basta reabilitar socialmente a paternidade: temos também de ousar purificar criticamente determinadas imagens paternas. Por exemplo, um dos clássicos da literatura europeia é a “Carta ao Pai”, de Franz Kafka. É um libelo dolorosíssimo, de acusação e culpa, que reflete amplamente o dilacerante processo interior em que Kafka viveu. Cresceu à sombra do pai, mas transportando este nó terrível: por mais que fizesse, jamais corresponderia às suas exigências e expectativas. O arranque da carta diz bem o drama que isto provoca: «Querido pai, perguntaste-me recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes a justificar esse medo, que eu não poderia reuni-los todos no momento de falar…. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser ainda de modo incompleto, porque mesmo no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti».
Mas mesmo sem ir tão longe, como no caso de Kafka, há imagens de pai demasiado condicionadas pelos esteriótipos da cultura envolvente e que redundam num distanciamento e numa secura. O escritor António Alçada Batista conta esta história exemplar, na primeira pessoa: «Uma vez eu fui operado e estava só no hospital com meu pai. Tinha uma dor pegada das unhas dos pés às pontas dos cabelos e meu pai estava ao pé de mim. Eu tinha já 19 anos, mas apeteceu-me a sua mão humana e paterna e disse-lhe:
- Deixe-me ver a sua mão.
- Para quê?
- Preciso da sua mão.
Ele sorriu-se e deu-ma, mas imediatamente começaram a funcionar dentro de si as pesadas estruturas marialvas e académicas que recusam a um filho de 19 anos a mão terna dum pai. E, disfarçadamente, começou a retirar a sua mão até que a minha continuou pedinte mas só e unilateral.».
«Preciso da tua mão». O conhecimento do que é um pai só pode ser um conhecimento vivido, profundamente experimental, qualquer coisa de sensível que nos faz participar de qualquer coisa de absoluto.
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias da Madeira
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