“O telemóvel faz parte do corpo — e mais precisamente do cérebro — dos adolescentes de hoje”

Daniel Sampaio escreveu para os pais um livro sobre a nova extensão do corpo dos filhos. E disse que o telemóvel pode ser uma janela de comunicação com estes, numa era em que a “conversa tradicional” à mesa ou no sofá simplesmente “não resulta”

Mais de uma vintena de livros publicados depois, o psiquiatra Daniel Sampaio escreveu “Do Telemóvel para o Mundo — Pais e Adolescentes no Tempo da Internet”. Se dúvidas houvesse, o título já é suficientemente esclarecedor: telemóvel e mundo fazem parte da mesma paisagem, estão interligados numa teia de reconhecimento nem sempre compreendida pelos pais. Essa incompreensão leva a que estes vejam o universo digital como inimigo, em vez de o acolherem como uma oportunidade de partilha e de diálogo.
Daniel Sampaio decifra alguns dos conflitos provocados pela omnipresença da internet, concluindo, por exemplo, que as regras devem ser colocadas logo nos primeiros contactos da criança com essa dimensão. Instando os pais a uma “parentalidade construtiva”, em que a autoridade não está desprovida de afeto e de negociação, defende algumas horas diárias em que toda a família fique desligada dos dispositivos.
No tempo restante, diz, os pais podem aproveitar os novos canais de comunicação para trocar mensagens com os filhos, que, sendo curtas e instantâneas, não são menos significativas. O psiquiatra conversou com o Expresso na véspera do lançamento, e disse o que nem todos os pais estão preparados para ouvir: “A conversa pausada, pedagógica, resulta muito pouco com os jovens de hoje.”
O título do livro, “Do Telemóvel para o Mundo”, diz-nos aquilo que é defendido dentro dele: que não há adolescência nem relação com o mundo sem telemóvel. Para muitos pais, isto é ainda difícil de aceitar. Porquê?
Uma das mensagens principais do livro é justamente a ideia de que esse objeto, o telemóvel, abre a porta para o mundo; que faz parte do corpo — e mais precisamente do cérebro — dos adolescentes de hoje. É completamente diferente de um telefone tradicional, porque através do telemóvel eles não só contactam com muita gente, como podem marcar uma viagem, um restaurante, uma festa... Tudo isto deve ser aproveitado. Estamos num mundo novo, e é fundamental que pais e filhos se encontrem nesse mundo e que o telemóvel não seja apenas um motivo de conflito.
A dada altura recorda que a internet não é uma moda, que veio para ficar. Não adianta resistir, ela faz parte da vida dos filhos.
Exatamente, dos filhos e dos pais. E o que proponho é um encontro de gerações. A forma como hoje comunicamos, sobretudo com os mais novos, faz-se através do WhatsApp, do Instagram. É uma comunicação instantânea que pode representar um modo de convivermos mais com eles, e não de nos afrontarmos e separarmos.
Quer dizer que não é pelo facto de as mensagens serem curtas ou instantâneas que têm menos significado?
Essa é uma das coisas que combato: aquela aproximação tradicional, do século XX, em que os pais se sentam a uma mesa ou num cadeirão a conversar com os filhos de uma forma 'séria'. Todos os adolescentes com quem falei, e falei com muitos, disseram que a “conversa à séria” não resulta. Os pais têm que aproveitar pequenos momentos para passar as suas mensagens como educadores e ao mesmo tempo receberem aquilo que os filhos têm para dizer. Essas mensagens instantâneas do dia a dia são o reflexo da sociedade atual, em que tudo é muito rápido, e devem ser cada vez mais aproveitadas pelos pais. A conversa pausada, pedagógica, resulta muito pouco com os jovens de hoje, que recebem informação e partilham coisas entre eles a todo o momento.
Que novo desafio é este? Como é que os pais se adaptam a esta realidade mantendo o controlo e a fixação de limites?
O telemóvel deve ser dado só por volta dos 10 anos, mas as regras de utilização devem ser transmitidas antes disso. É na infância que vamos interiorizando, junto dos nossos filhos e netos, a necessidade de um controlo da internet, sobretudo do tempo de utilização, e da ética do que se deve ver e do que deve lá colocar. Isso tem de ser feito cedo, quando as crianças começam a contactar com o iPad, com o tablet, com o computador, com o telemóvel dos pais. Se as regras não acompanharem essa iniciação, a adolescência será muito mais difícil em termos dos conflitos à volta da internet. Também sou contra o uso de filtros ou que os pais espreitem os telemóveis dos filhos, porque isso introduz uma falta de confiança entre gerações que é o pior que pode acontecer na adolescência.
A maioria dos pais dá o telemóvel aos 10 anos sem a gradualidade com que tratam outras áreas da vida dos filhos, como a alimentação ou a escolarização. Deixam-nos usar a tecnologia à vontade.
Isso acontece muito. É preciso dar com parcimónia, com regras desde o princípio. Não se pode estudar a receber mensagens, não se pode ir para a mesa ou para cama com o telemóvel. No livro conto a história de uma miúda que rastejava à procura do telemóvel que os pais lhe tinham retirado na hora de dormir. A questão das regras prende-se também com a exposição das crianças a uma torrente que é difícil de parar. Por isso, elas têm de saber fazê-lo ou saber que os pais o vão fazer.
Os adultos que não cresceram com esta tecnologia depressa passam a ter com ela uma relação de dependência. Como podemos prevenir que isso aconteça com os jovens?
Este livro, feito a partir daquilo que eu observo na minha interação com os adolescentes, é dedicado aos pais. É informativo, como fica claro no capítulo sobre a sexualidade, o álcool e as drogas, em que dou muitas informações que me parecem importantes e que nem sempre os pais possuem. Por exemplo, os jovens saem à noite e bebem, é muito difícil contrariar isso, mas podemos ensinar como beber com moderação. Nós só podemos ensinar o que praticamos, o que é válido também para as tecnologias. Os pais são utilizadores que podem não saber utilizar bem. Muitas vezes, vêmo-los agarrados ao seu telemóvel, tal como os filhos. Neste sentido, eu defendo que haja na família momentos em que ninguém esteja com o telemóvel — o pequeno-almoço, a hora de chegar a casa, a hora de jantar e a de deitar. Pelo menos nesses momentos, acho que deveríamos privilegiar o diálogo familiar, espontâneo e ao vivo.
Debruça-se também sobre a questão da disciplina e da rebeldia imputada aos adolescentes. E uma palavra que aparece muito é “negociação”. Porquê?
Isto é essencial e deriva de estudos mais recentes. Há dados muito consistentes da investigação daquilo a que chamo “parentalidade construtiva”, que é a autoridade sem autoritarismo e com envolvimento afetivo. Os pais devem ter autoridade sobre os filhos, adequada à idade, mas esta tem de estar associada ao envolvimento afetivo. Se eu tenho uma relação de afeto com um filho ou com um neto, a minha autoridade torna-se natural. Sem afeto na relação, a minha autoridade é sentida como uma imposição. Nessa altura, a rebeldia funciona para a contestar. É importante que os pais percebam que este é um diálogo e uma negociação em que não podem perder o pé, e que assenta num “amor firme”.
O que tem a dizer aos pais permissivos?
O pai camarada tem a ideia de que não é preciso intervir porque o próprio crescimento vai tornar o adolescente mais responsável. Isto é errado. Curiosamente, muitos adolescentes dizem-me que é importante que os pais intervenham. O adolescente, para crescer, precisa de contestar. Mas está à espera que os pais correspondam com o tal amor firme. Estes não devem inibir-se de dar a sua opinião e de proibir quando o acharem necessário.
Referiu a questão da sexualidade. Também aí o telemóvel faz uma mediação?
A pornografia é um tema muito importante do qual ninguém fala, nem os pais nem as escolas. O acesso tornou-se fácil através do telemóvel e são sobretudo os rapazes que a consomem. Tratar isto é urgente, porque a pornografia pode induzir uma ideia de sexualidade que não corresponde à sexualidade normal e real das pessoas. Por outro lado, é uma indústria que explora o corpo da mulher de forma indevida. Há um risco muito grande, e já observável, de que essas imagens venham influenciar o comportamento sexual. Não vamos impedir que os jovens vejam pornografia, mas podemos discutir os conteúdos com eles. E basta puxarmos o assunto para percebermos que isso é algo que eles querem discutir com um adulto...se o adulto aparecer.

Por Luciana Leiderfarb
Jornalista

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