#MeToo: os homens salvam-se a contar histórias sobre filhos e filhas

No meu livro, “Alentejo Prometido”, retrato a prisão sexual que os “bons costumes” representavam para as mulheres, sobretudo as mais pobres como as minhas avós e bisavós. Como é que eu podia defender um regresso a uma coisa que fez de mim um bastardo?

Meu caro Francisco Mendes da Silva,
Confesso que hesitei em responder à tua coluna, porque não vejo relação entre aquilo que escreveste e aquilo que eu escrevi. Ou seja, escreveste um texto confuso. Eu percebo isso. Estes são tempos confusos para os homens. Também já escrevi textos confusos e pelo menos um texto inaceitável sobre este assunto. Estamos a navegar e a construir a jangada ao mesmo tempo; já estamos no mar mas o barco ainda não tem leme nem casco completo. Mas, se me permites, julgo que aqui a confusão está do teu lado. O teu texto é um exemplo clássico de como uma grelha de leitura pode criar os seus factos alternativos. Viste o que quiseste ver, não o que está lá. Como tantos outros antes de ti, fizeste de mim um homem de palha.
A base da tua argumentação passa por dizer que eu pretendo um regresso ao “antigamente” e ao período pré-anos 60. Eu nunca escrevi isso. Aliás, estranho a tua conclusão, porque sei que me lês há muito tempo. E há muito que critico a moral sexual do “antigamente”, do tempo dos nossos avós e bisavós. No meu livro, “Alentejo Prometido”, retrato a prisão sexual que os “bons costumes” representavam para as mulheres, sobretudo as mais pobres como as minhas avós e bisavós. Como é que eu podia defender um regresso a uma coisa que fez de mim um bastardo? Também não percebo como é que podes namorar com a ideia de que eu não desejo a emancipação da mulher ou a igualdade entre sexos. Encontra-me, por favor, um cronista em Portugal que escreva mais do que eu sobre emancipação feminina. Desde referências intelectuais a mulheres e personagens como Filomena Mónica e Alexandra Alpha, até às crónicas que celebram a coragem de operárias como a minha mãe, escrevo e celebro as mulheres soberanas há muito. O que eu não aceito é a noção de que a revolução sexual é a base da emancipação feminina. Ligar “emancipação feminina” e “revolução sexual dos anos 60” é continuar a ver a mulher apenas e só pelo ângulo anatómico.
A emancipação das mulheres está a ser feita nas escolas, nas faculdades, no trabalho. São dois processos distintos: a “revolução sexual” remete para a mulher enquanto corpo, a “emancipação” remete para a mulher enquanto inteligência. A primeira fez e faz o jogo do marialva, a segunda é a negação do marialva. Julgo que o #MeToo é o momento em que as mulheres destroem a primeira em nome da segunda.
Partindo do pressuposto de que me lês há muito tempo, partindo do pressuposto que conheces este lado “feminista” do meu trabalho, porque é que saltaste logo para a ideia de que eu queria uma espécie de utopia regressiva, isto é, reaccionária? As palavras têm ecos lá dentro. A mesma palavra pode ecoar de forma diferente em diferentes épocas.
A mesma palavra pode ecoar de forma diferente em pessoas diferentes na mesma época. Tenho amigos conservadores que, apesar de concordarem com tudo isto, recusam apoiar o #MeToo porque acham que é demasiado “feminista”. Ficam parados na palavra “feminismo”. Julgo que tu ficaste parado nas expressões “sixties”, “anos 60”, “revolução sexual”. Parece-me que a tua identidade pop reagiu instintivamente ao meu ataque aos anos 60. Se isto for verdade (dir-me-ás se é ou não), julgo que tens um problema ou uma confusão para resolver: não é um grande cartaz conservador dizermos que somos conservadores só porque queremos conservar a herança dos anos 60 ou 70. Aliás, parece-me que este pode ser um problema de grande parte da direita: ao reagir instintivamente contra o #MeToo em defesa do status quo, a direita está a defender o maior adversário de uma moral conservadora, o Maio de 68, os anos 60 e 70, etc. Não sei se é o teu caso (dir-me-ás se é ou não), mas o certo é que tem sido um pouco trágico ver tantos conservadores, aqui e de além mares, a lutar pelos valores anti-conservadores dos anos 60 e 70; tem sido um pouco trágico ver tantos conservadores de índole anglo-saxónica numa descoberta da França só por causa da “sexualidade à francesa”, isto é, uma sexualidade ancorada no radicalismo dissoluto e anti-família dos anos 60. Eu ainda sou do tempo em que ser de direita implicava ser contra a contra-cultura pós-moderna e esquerdista que foi criada precisamente anos 60 e 70 (New Left). E – não tenhas dúvidas - o #MeToo é o maior tiro nesse porta-aviões radical que tem tido a hegemonia moral e intelectual. Os conservadores trairão o conservadorismo se não compreenderem isto. As mulheres, das mais radicais até às mais conservadoras, das ateias até às cristãs, estão a dizer que não estão satisfeitas com a moral criada pelos anos 60 e 70 e mantida até hoje. Perante isto, quem sempre defendeu uma moral assente no casamento, na família e no respeito pelo corpo, na prudência e, sim, num módico de pudor cristão não pode virar a cara e dizer que o #MeToo é “feminista” ou mais um avanço ditatorial do “politicamente correcto”. Portanto, meu caro amigo, espero sinceramente que não sejas um conservador cujo conservadorismo passa apenas pela conservação do status quo. Porque este status quo, Francisco, é intrinsecamente anti-conservador. Eu não quero nem vou ser o conservador que conserva a herança dos anos 60 e 70 só porque isso é o status quo que herdei da geração anterior. Ou seja, parece-me que tu e muitos homens à direita correm o risco de um certo relativismo oakeshottiano. Quando o presente é o contrário dos nossos valores, há que lutar contra esse presente, contra esse status quo (Burke, os federalistas e Lincoln explicam isto). Caso contrário, o nosso conservadorismo não tem substância, é apenas reactivo, é apenas uma pose. Pergunto: queres conservar a contra-cultura dos anos 60 que entretanto se transformou no mainstream, ou queres conservar um código de valores universal e intemporal? Queres ser o conservador do legado estético dos anos 60 e 70, ou queres ser o conservador de um legado ético mais profundo?
À semelhança de Ross Douthat e de tantos outros, eu defendo uma ideia simples: a revolução sexual e a moral pós-moderna estão em perigo e quem tem uma visão diferente das coisas, uma visão mais cristã, deve levantar o braço para recordar que, se calhar, era boa ideia redignificar a moral que sustenta há dois mil anos a nossa civilização, uma moral que, apesar de ter sido um pouco abalada nas últimas décadas, é bem capaz de ser a resposta para aquilo que se está a passar na relação entre os sexos. Ora, o que eu acho mais estranho nesta troca cordial de cartas é precisamente isto: um conservador (eu) defende um ethos católico, mas depois um segundo conservador (tu) fica incomodado com esse lado cristão e conservador do primeiro. Se tu achas que a defesa do Cântico dos Cânticos contra a Playboy é um sintoma de “soberba revolucionária”, então, meu caro, tens um problema em mãos; até porque és tu quem está mais próximo da verdadeira revolução aqui em causa, a revolução sexual. Volto a perguntar: estás a defender o quê? Qual é o teu castelo? Um código de valores universal com dois mil ou mesmo quatro mil anos, ou um código pop e pós-moderno com algumas décadas? És um conservador que olha para cima ou um conservador que olha para ontem?
Repara que defender um ethos cristão não é voltar ao “antigamente” dos nossos avós e pais. O código dos “bons costumes” era tão pouco cristão como o código sexual do Maio de 68 – as minhas avós e bisavós que digam. É por isso que defendo um “novo protocolo” que nos defenda do 80 do passado e do 8 do presente. De resto, para agravar a tua confusão, tu acabas por reconhecer isso, acabas por dizer que eu quero um novo protocolo na relação entre sexos. Se eu quero um novo protocolo como é posso desejar ao mesmo tempo um regresso ao passado? Quem propôs um regresso utópico ao “antigamente” foi a juventude partidária do teu partido. Na altura, falei aqui do caso para discordar da ideia, porque me parecia o tal regresso ingénuo ao “antigamente”. Mas também te digo, Francisco, que admirei a coragem destes miúdos: é de homem defender pureza e castidade neste ambiente ainda ancorado no espírito soixante-huitard. É de homem.
Será que tudo isto vai criar casos injustos dentro da lógica da caça às bruxas? Sim. Cá estaremos para criticar esses excessos. Mas não podemos confundir as coisas. As denúncias de abusos pedófilos dentro da Igreja também criaram um excesso anti-católico muitas vezes injusto para a igreja como um todo, mas essas denúncias tinham e têm de ser feitas em nome da decência das vítimas. Passa-se o mesmo com esta questão do assédio sexual. Até porque este é o momento em que se está a criar a linguagem que permite a denúncia.
Às vezes, confesso-te, fico comovido com as semelhanças entre as alentejanas analfabetas como as minhas avós e mulheres tão poderosas e tão educadas como Natalie Portman. O que os últimos meses têm revelado é que, tal como as camponesas de um Portugal esquecido, estas mulheres modernas e poderosas nem sequer tinham as palavras para denunciar aquilo que sofriam. Meio século de “revolução sexual” não mudou nada neste campo. Nada.
Este é o momento em que raparigas e mulheres adquirem as ferramentas mentais e semânticas (a narrativa) que permitem denunciar aquilo que – até agora – ficava sempre no ângulo morto.
Nada disto, repara, é pactuar com o feminismo radicalíssimo e hipócrita (onde está a crítica à misoginia dos homens muçulmanos ou da cultura rap?), um feminismo bulldozer que sonha com a queda dos machos, sobretudo os machos brancos. Defendo e continuarei a defender códigos masculinos. Já foste apelidado de “fascista” pela realeza pós-moderna da pátria só porque defendeste a caça, a tropa, o Top Gear, os códigos de caserna dos jogos colectivos, a liberdade de sedução à Dom Rigoberto, a liberdade que é um homem olhar e descrever a beleza feminina? Eu já. E continuarei a ser. Lido bem com isso. Não preciso de aprovações da esquerda, moderna ou pós-moderna. No entanto, se estou disponível para defender códigos masculinos, também estou disponível para reformar parte desses códigos no sentido de criarmos cavalheiros. Sim, cavalheiros. Julgo que és uma das pessoas a quem não tenho de explicar o sentido da palavra “cavalheiro”.
A criação de uma nova ideia de cavalheirismo passa, a meu ver, por duas coisas. Primeira, educar os rapazes num código sexual diferente (a chave do #MeToo); repara que a minha carta original não é uma acusação, mas sim um apelo aos pais de rapazes. Segunda, educar os homens para um papel diferente em casa. Esta é uma discussão tão ou mais importante do que #MeToo. É por isso que escrevi esta espécie de livro. Nós, homens de 2017, sobretudo os homens preocupados com a ideia de família, precisamos de uma nova narrativa para a paternidade. Mas isto já será outra conversa.
Um abraço amigo,
Henrique 

PS: título da coluna roubada em parte ao meu colega do Expresso, Pedro Candeias. 

RENASCENÇA

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