Família: o verdadeiro património

Reserva das imperfeições humanas
Não é verdade que a família seja quem nos dê mais lonjura ao pensamento. Nem quem nos eduque.
Nem é verdade que nos dê mais compaixão, mais humor e mais ternura. E mais reconhecimento. Eu acho que as famílias nos tornam, muitas vezes, muito infelizes. E são mais amigas da dor do que deviam. Começando pelos pais. Quando desconhecem os filhos, por exemplo, e desistem de os conhecer, tornando-os estranhos, para si próprios, ao mesmo tempo. E quando nos encaminha para tudo aquilo que a deixa mais sossegada, mesmo que, com isso, o nosso futuro parecesse nunca aceitar pessoas imperfeitas. E quando não nos interpela, pondo em palavras tudo aquilo de que fugimos de pensar. E quando alguém por ela confunde a sua com a nossa vida. Ou nos deixa sozinhos como se, com isso, respeitasse a nossa singularidade, quando o que nos dói é, unicamente, a solidão. E – muito pior – muitas famílias tornam-nos desfelizes, que é assim uma forma de não sermos nem felizes nem infelizes, mas somente «assim-assim». Como se os nossos sonhos fossem, dessa maneira, um pequeno «tanto faz!».
Uma família serve para nos sentirmos acompanhados por dentro, adivinhados quando nos sentimos misteriosos e arrebatados sempre que estamos sonolentos. E ensina-nos que perdoar é esquecer sem dar por isso. Eu acho que, para tantas coisas, uma família, para ser família, tem de ser numerosa. E só se for assim será sagrada. Nas famílias de verdade cabe a educadora que nos contava histórias e a professora que nos ralhava sempre que mordíamos a língua para pensar. E o senhor da padaria, que nos sorria, de manhã, como muitos dos nossos tios nunca o fizeram. E o Augusto, dos Jornais, que mal falava mas que, por nada que se esperasse, se comovia enquanto ria. E a D. Isaura, dos bordados, que fazia de conta que não percebia quando estávamos a mentir. E o Pai Natal e Deus, sempre quem ficávamos, noite fora, à calhandrice com eles, mais vezes do que conversávamos com os nossos amigos. E eles, claro, para além de todos aqueles que sentimos serem nossos. Uma família é uma barafunda. E só se for assim é paz. E é amiga da verdade, sem a qual se é desfeliz. E puxa os sentimentos, de supetão, do fundo da alma para a superfície da pele. E desabotoa a fantasia. E é dedicada com o colo. E afeiçoa-se ao brincar. E à esperança, é claro. E a tudo o mais que quem fala dos valores da família nunca nos diz. Na verdade, a ideia de família tem sido tão enxovalhada que já não sei se gosto dela. Do que gostava – mesmo! – é que a família fosse, simplesmente, o sindicato da bondade. Mas não sei se conseguirei explicar que, só se for assim, será família. E será feliz.
 
 Por Eduardo Sá

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