Sínodo da Família. Papa derrotado no primeiro round?

Vencido ou vencedor? Na véspera do final do sínodo da família, os observadores e vaticanistas desdobram-se em análises: como sai o pontificado de Francisco da grande reunião de bispos que quis reflectir sobre as novas formas de família?

Há já quem dê o argentino, que já demonstrou várias vezes o desejo de uma Igreja mais inclusiva, como derrotado - uma vez que os relatórios dos grupos de trabalho, conhecidos anteontem, descartam a possibilidade de qualquer mudança. Outros, porém, defendem que o Papa Francisco ganhou: nunca nenhum sínodo teve tanto mediatismo, chegando mesmo a ser comparado ao Concílio Vaticano II. Por isso, mesmo que os bispos e cardeais mais conservadores possam ter saído satisfeitos do sínodo, Francisco conseguiu que a ideia de que a Igreja está aberta à mudança corresse o mundo. Mas nenhuma análise pode ser linear.


O Papa foi dando sinais, no último ano e meio, de que pretende uma Igreja Católica mais próxima do mundo e da realidade actual. O primeiro chegou a 28 de Julho do ano passado. No avião, de regresso do Brasil, Francisco referiu-se aos homossexuais: "Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?" Ainda na mesma viagem, falou também dos divorciados recasados, recordando que a Igreja Ortodoxa permite segundas uniões. "Este problema deve ser estudado", afirmou.

Três meses depois, Francisco convocava um sínodo (encontro de bispos) sobre a família. Ao mesmo tempo, incumbia as conferências episcopais de todos os países de passarem um questionário nas paróquias, para que os fiéis pudessem opinar sobre o tema. Entre as perguntas estavam assuntos polémicos, como a comunhão de divorciados recasados (que a Igreja não permite) e o acolhimentos aos homossexuais. O jornalista vaticanista Sandro Magister observava, ontem, que só isso foi suficiente para criar na opinião pública mundial "a ideia de que estas questões estariam em aberto, não só na teoria como também na prática".

Desde essa altura, começou a tornar-se evidente que existe uma Igreja partida em dois. A Conferência Episcopal alemã apressou-se a publicar um documento incentivando o acesso dos divorciados aos sacramentos. A resposta da ala mais conservadora chegou dias depois: Gerhard Müller, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou um artigo chamado "A força da graça" no jornal do Vaticano, em que era reafirmada a proibição da comunhão. Ainda assim, os bispos alemães não se retractaram e o Papa Francisco não se manifestou.

Em Fevereiro deste ano, o Papa volta a dar um sinal. Os cardeais estiveram reunidos num consistório e Francisco convidou o cardeal Walter Kasper - que desde a década de 1990 se bate publicamente pelo acesso dos divorciados aos sacramentos e que não encontrou apoio em Bento XVI e João Paulo II - para fazer uma reflexão sobre o tema na abertura do encontro. E se muitos cardeais não gostaram de ouvir o discurso do costume, o Papa Francisco elogiou a intervenção, que acabou publicada no jornal italiano "Il Foglio". O cardeal criticou o "abismo entre a doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família e as convicções vividas por muitos cristãos".

No mês seguinte, nova ofensiva da ala conservadora: a Congregação para a Doutrina da Fé terá planeado a publicação, novamente no jornal do Vaticano, de um texto conservador. Mas o Papa Francisco ter-se-á oposto à saída do artigo. Mesmo assim, as críticas a Kasper subiram de tom e vários cardeais deram entrevistas a jornais, defendendo a doutrina da Igreja. Em vésperas do arranque do sínodo, cinco deles juntaram, em livro, uma série de intervenções e ensaios de especialistas contra a comunhão dos divorciados. Por essa altura, Kasper já tinha conquistado espaço mediático e houve quem interpretasse o livro como uma afronta a Francisco.

Pelo meio, o Papa casou casais pouco tradicionais - unidos pelo civil e uma mãe solteira. Os noivos foram escolhidos pelo vicariato de Roma, ainda que sob a direcção do sumo pontífice, que também aceitou baptizar o filho de uma mãe solteira.

Durante o sínodo, Francisco deixou-se ficar em segundo plano. Durante dias a fio, ouviu tudo o que se disse em silêncio e tomou notas. Era dos primeiros a chegar às sessões e juntou-se sempre aos bispos, especialistas e famílias convidadas nas pausas para o café. Fizeram-se filas para o cumprimentar, muitos pediram-lhe que benzesse objectos e fotografias e o Papa quase nunca conseguiu chegar à máquina do café. Até porque nem precisou: trouxeram-lho sempre. Fora do Vaticano, com os jornais de todo o mundo atentos ao que poderia sair do sínodo, a popularidade de Francisco subiu e a sua conta no Twitter (@pontifex) ultrapassou, ao oitavo dia, a barreira dos 16 milhões de seguidores.

O Papa escolheu cedo o grupo que iria orientar os trabalhos. Nomeou para secretário-geral o cardeal Lorenzo Baldisseri que, não tendo grande experiência em temas de família, lhe é bastante próximo. Também indicou o bispo e teólogo Bruno Forte, cuja linha de pensamento é de maior abertura em relação à sexualidade. Já durante o sínodo, escolheu os responsáveis pela redacção da mensagem final - todos conotados como progressistas, apesar de o relator-geral, o húngaro Peter Erdö, ser conservador.

Na última segunda-feira, numa conferência de imprensa a seguir à divulgação do relatório intercalar do sínodo - um documento que deixava antever alguma abertura em relação aos homossexuais e aos divorciados -, um jornalista pôs questões sobre a passagem em que gays são referidos. O cardeal húngaro criou alguma tensão quando passou a palavra a Bruno Forte, desmarcando-se da suposta abertura do relatório, e respondendo: "Quem escreveu essa passagem é que pode explicar".

No início desta semana, o relatório chegou aos jornais de todo o mundo e prometia mudanças. O estrago já estava feito e, na terça-feira, o cardeal sul-africano Napier desabafou: "A mensagem já chegou e é irremediável: 'é isto que o sínodo e a Igreja pensam' e tudo o que podemos fazer é tentar minimizar os estragos".

Anteontem, as conclusões dos dez grupos de trabalho em que os bispos estiveram divididos para debater o relatório intercalar deitaram tudo por terra. O documento foi arrasado, a começar pelo facto de ter sido divulgado publicamente. A maior parte dos bispos não gostou que a mensagem tivesse sido disseminada. Ao mesmo tempo, os grupos reafirmaram toda a doutrina da Igreja e mostraram-se contra mudanças em relação aos gays e divorciados.

Na quinta-feira, com as conclusões já em cima da mesa, a sala do sínodo incendiou-se. O secretário-geral Baldisseri, sentado ao lado do Papa, anunciou que não seriam tornadas públicas. Choveram protestos: os mesmos que foram contra a divulgação do relatório intercalar eram agora a favor da divulgação das conclusões. O Papa manteve-se sereno e não abriu a boca. Horas depois, o porta-voz do Vaticano anunciava que seriam publicadas.


Ontem, todos jornais escreveram que, a avaliar pelas recomendações dos bispos, nada mudará na Igreja Católica. Francisco saiu derrotado e ala conservadora venceu? Há quem garanta que não: o eco mediático das propostas de Kasper e o debate lançado em todo o mundo sobre qual deve ser a posição da Igreja podem significar a vitória do Papa. A discussão ainda está longe do fim.

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